#02 volpílogos
a magia das cidades pequenas, a resistência para voltar à terapia, o clube do livro de uma sentada e as urgências que nos impedem de boiar.
e ando sobre a terra
ser um escritor um tanto reconhecido tem lá suas vantagens, dentre eles a possibilidade de viajar para eventos literários. nos últimos dois anos tenho acumulado boas milhas. na newsletter anterior tinha acabado de voltar da flip, em paraty-rj, não se passaram duas semanas e já escrevo este volpílogo tendo retornado da flica, em cachoeira-ba, cidade de 29 mil habitantes no recôncavo baiano.
quando disse no instagram que a cidade de cachoeira foi cachoeira em mim, não menti. ali fui tomado por um renovo, por uma fé no futuro. as pessoas muito simples. uma senhorinha me chamando de seu neto me oferecendo um sorriso de reconhecimento. uma moça me olhando conversar em inglês com a autora gringa (upile chisala, autora de “eu destilo melanina e mel”, agora bffs) e dizendo com um olhar apaixonado puxa acho tão lindo falar assim. um artista de rua orgulhosíssimo por ter identificado minhas origens cariocas no momento em que eu disse ter achado uma de suas obras “maneira”. outro, uma hora depois de ter me dado informação de como chegar à feira livre, me viu passando na rua outra vez e fez questão de correr ao meu encalce preocupado se de fato achei o lugar. aquela gente chorando emocionada enquanto edson gomes lotava a praça cantando “e ando sobre a terra e vivo sob o sol e as minhas raízes. eu balanço. eu balanço. eu balanço. vem me regar, mãe”.
mal sei explicar o que é a felicidade. todavia, suspeito ter sido verdadeiramente feliz ali.
o cão arrependido, o filho pródigo
em março deste ano rompi com a terapia de forma bruta. uma vontade de não dar satisfação, de me ver livre para despactuar com o terapeuta, nossa, chega. aqueles encontros não me serviam mais. eu sempre cheio dos mesmos sintomas e das repetições estúpidas de mim mesmo. meu terapeuta um homem negro baiano pesquisador das questões de gênero e masculinidades. maravilhoso. me acompanhando há 3 anos. e? talvez fosse hora dele se ocupar com gente que precise de verdade.
ignoro aqui o fato de que que foi ele quem me ensinou a perceber sobre mim mesmo como ninguém mais (arrisco dizer?). inclusive, se não o conhecesse, jamais teria escrito meu novo romance. diogo me ensinou a sondar minhas dores. devo muito ao seu trabalho. mesmo assim eu só queria romper aquele ciclo.
e rompi. quando quero, faço. se não faço, adoeço. sou difícil.
sete meses depois, toc toc toc, sou eu de novo. um rabo entre as pernas. volta o cão arrependido, o filho pródigo. oi diogo, sei que fui embora de forma descabida. sou impulsivo, você sabe. achava que já sabia lidar com as intempéries da vida, mas apareceram coisas que eu já não sabia nomear, sinto que não sei a gramática sobre mim mesmo. olha só onde me enfiei. você vai me receber ou não?
chorei um pouco. diogo me fez muitas perguntas, me pediu para tentar nomear boa parte da minha bagunça, me espiou com um olhar um tanto frio, mas por fim… me aceitou de volta.
não sei que batalha é essa que travei comigo mesmo, como se eu precisasse provar para mim que poderia ficar muito tempo sem terapia. bom, eu ainda não posso. a gente não pode interromper os tratamentos da vida só porque a gente quer.
stefano, esses são os sinais vermelhos que você não pode atravessar. tenha mais cuidado consigo.
talvez o mesmo sirva para você que me lê.
tá experimentando com pressa?
na flica, em uma mesa incrível com liniker e jota mombaça, fui marcado por duas frases sobre o presente. jota disse que o presente se experimenta sem pressa. liniker então complementou, sugeriu que boiássemos no tempo do agora.
gosto dessas frases. uma pena raramente poder vivê-las na prática. de verdade, uma pena.
tenho um centauro tatuado no braço. sou uma aljava de flechas sempre apontadas para o futuro, disparando em muitas direções. estamos todos tão apressados. o capitalismo feito um antolho, aquela viseira de cavalo, manipulando nossa visão.
me pergunto quem pode boiar no agora enquanto volta do trabalho em um transporte hiperlotado, luta contra um trauma ou tem a conta beirando o vermelho.
senta com carinho
junior achou o nome do meu futuro clube do livro pejorativo demais. de fato, soa. é ambíguo, certo. putz. agora estou confuso. me digam vocês. estou planejando inaugurar um clubinho para lermos somente livros finos. finíssimos. tamanho tipo annie ernaux. assinantes da newsletter poderão participar.
o nome que eu pensei foi… clube do livro de uma sentada.
é muito ruim?
Ah mano, que texto lindo esse, tu em Cachoeira me lembrou quando fui em Lençóis- BA no ano passado, um lugar que me fez querer viver meu últimos dias, parecia que o ar de lá me dava a paz que falta no calor do cotidiano. Esse lance da terapia me pegou na curva, tô a dois meses longe... Tuas frases curtas estão cada vez maiores pra dentro da nossa mente, que bonito te ler
puxa, pra quem tá vivendo como imigrante, a sua vivência de Cachoeira me faz questionar muitas decisões... Pra mim felicidade reside muito em se conectar com a cidade, ou pelo menos com o quarteirão. Essas palavras vão ficar boiando no meu coração por um tempinho, hehe...
agora, gostei não desse nome...se é pra ler livros finos, tá mais pra clube do livro de fio dental 🤣 (me perdoa)