Medo de precisar deles em algum momento?
O que tenho elaborado sobre o caso de Vanessa Bárbara no episódio "CPF na nota? (a anatomia de uma mentira)", da Rádio Novelo.
Nunca entendi muito bem que o “Seja homem” seja dito para... homens. Não seríamos nós já... homens? Então por que ser?
Esse dito pressupõe que existe um modelo a ser seguido, e o que não se enquadra a este padrão representa uma adulteração do masculino. Homem tem dessas coisas, uma necessidade de manutenção do reconhecimento alheio quanto ao seu lugar merecido no topo da hierarquia do poder. Ele provê, bate, é forte, firme, estável, controla, fertiliza a mulher, trabalha, ganha mais, conserta, goza primeiro porque o seu gozo produz a família, a qual ele há de prover, em um ciclo infinito.
Homem hétero junto reunido é uma coisa curiosa. Uma experiência antropológica. Nas histórias que contam um para os outros, os homens são, na maioria das vezes, protagonistas implacáveis. Narram suas conquistas em busca de legitimação dos próprios homens. O homem está sempre em busca de reconhecimento quanto a sua virilidade (em seu aspecto ético, virtus, questão de honra).
A filósofa francesa, Elisabeth Badinter, afirma que a virilidade não é um dom natural. A virilidade é fabricada. Acredito que ela se constrói de homem para homem. Começa no “engole o choro” que se ouve de um pai, nas brincadeiras de queda de braço, do jato de mijo mais longe, e segue ao longo da vida, na capacidade de beber e se manter sóbrio (cu de bêbado não tem dono), na vantagem que se conta, entre homens, sobre o “suposto sucesso” com as mulheres. Quanto mais mulheres, e quanto mais subordinada ela estiver (na vida e no ato), mais viril o homem é. E por aí vai. A fabricação da virilidade nunca é dada como tarefa concluída, uma vez que qualquer sinal de perda do controle representa a perda da masculinidade: um grito fino de susto, uma perna cruzada sem querer, uma rebolada fora do limite.
É novidade que os homens performam um para os outros (e contra as mulheres, Pierre Bourdieu diria)? A homoafetividade entre homens héteros é a coisa mais comum que existe. Está nas partidas de futebol, na roda de amigos, nos círculos acadêmicos, na cervejinha, no pacto do silêncio entre camaradas quando um amigo erra e em tantas outras dinâmicas. O episódio denunciado pela autora Vanessa Bárbara esta semana, no entanto, apresenta um recorte de raça e classe que considero indissociável.
A performatividade masculina em um grupo composto por homens brancos héteros intelectuais precisa ser observada com uma lente apropriada. No livro Feminismos e Masculinidades (Ed. Cultura Acadêmica), Osmund Pinho resgata uma metáfora muito interessante construída por um dos líderes do Partido dos Panteras Negras, Edrigle Cleaver, em Alma no exílio: Autobiografia espiritual e intelectual de um líder negro norte-americano. Neste ensaio, Osmund resgata a constatação de que, na sociedade de classes, os homens são divididos entre os que controlarão a sociedade e os que executarão as atividades braçais, uma divisão historicamente garantida pela usurpação violenta dos elementos de poder da sociedade.
Quando o homem branco transfere as atividades corpóreas aos criados, na sociedade colonial, ele passa então a glorificar sua própria mente, sua capacidade intelectual. É então a divisão do ocidental do trabalho que gera uma cisão entre mente e corpo, sobrevalorizando um em detrimento do outro. Ao homem branco hétero, definido então como padrão hegemônico, são (re)inscritos os valores da razão, inclusive a capacidade de controlar e administrar todos os outros grupos identitários, incluindo outros homens, o homem negro.
Considero necessário avaliar o que está presente no episódio: um grupo de homens héteros brancos e intelectuais, futuramente em cargos de poder na indústria das palavras escritas, reunidos para, entre outros, objetificar e depreciar os corpos de mulheres, contar vantagens, organizar e pactuar uma série de dispositivos capazes de encobrir casos de violência psicológica contra mulheres, e sabe-se lá Deus o quê mais.
Como os envolvidos no caso mencionaram na intenção de ressaltar que foram transformados (e eu realmente posso acreditar que sim), já faz 14 anos. No entanto, temos todos os anos que vivemos dentro de nós. A reparação é importante. Pedidos de desculpas importam, mas não sei se eles resolvem as coisas na prática.
A figura hegemônica do homem branco padrão pressupõe uma força simbólica tão forte que mete medo no mercado mesmo quanto estes homens denunciados assumem seus erros publicamente e pedem desculpas à vítima. Basta observar quantas e quais pessoas do mercado editorial declaram apoio à autora. Por que esse número é escasso? Seria por medo de perder o espaço que ocupam? Medo de ser lembrado por estes homens como alguém que assumiu o “lado errado” da história? Medo de precisar deles em algum momento? O sistema opera assim.
Catorze anos depois e a história de Vanessa ainda é a de muitas pessoas que se veem presas e assediadas por homens em relacionamentos conjugais e institucionais. Presas à dinâmicas onde a misoginia é uma linguagem comum.
Histórias como a de Vanessa precisam ser contadas porque atuam como denúncias, aquecem a agenda, fomentam o debate público e se tornam exemplos a não serem seguidos.
Não se enganem. O patriarcado é o tripé deste episódio. A virilidade é sinônimo de uma grande vulnerabilidade (já dizia Bourdieu). O falo é uma representação da ausência. E este problema, que, em outros casos, facilmente debanda para o feminicídio, só poderá encontrar um pouco de luz se investirmos na investigação do masculino (e seus recortes de raça e classe), na construção de um espaço educacional acolhedor (sem acolhimento não há transformação) e na formação dos meninos, que já são os homens de amanhã. Quem vai topar?
Obrigada por lembrar do recorte classe e raça. Pra quem transita entre as classes sociais, sabe que masculinidade tóxica é sufocante em todas. Homens brancos bem sucedidos, contudo, a constituem de forma mais velada (hipócrita). No fim, merece o mesmo selo de radioatividade.
Muito massa as reflexões do post, Stefano. Acrescenta questões interessantes sobre o caso. E o título escolhido por você é certeiro pois a pergunta também é a resposta.